quinta-feira, 5 de maio de 2011

DEUS DE BATOM

Em 1945, um grupo de soldados britânicos libertou do poderio germânico um campo de concentração chamado Bergen-Belsen. Um deles, o tenente-coronel Mercin Willet Gonin, condecorado pelo exército inglês com a Ordem do Serviço Distinto, relatou em seu diário o que foi encontrado ali.

Sou incapaz de uma descrição apropriada do circo de horrores em que meus homens e eu haveríamos de passar o mês seguinte da nosa vida. O lugar é um deserto inóspito, desprotegido como um galinheiro. Há cadáveres espalhados por todo lado, alguns em pilhas enormes, às vezes isolados ou pares no mesmo local em que caíram. Levei algum tempo para me acostumar a ver homens, mulheres e crianças tombarem ao passar por eles. Sabia-se que 500 deles morreriam por dia e que outros 500 ao dia continuariam morrendo durante semanas antes que alguma coisa que estivesse ao nosso alcance fazer causasse algum impacto. De qualquer forma, não era fácil ver uma criança morrer sufocada pela difteria quando se sabia que uma traqueostomia e alguns cuidados a teriam salvado. Viam-se mulheres se afogarem no próprio vômito porque estavam fracas demais para se virar de lado, homens comendo vermes agarrados a meio pedaço de pão pelo simples fato de que precisavam comer vermes se quisessem sobreviver e, depois de algum tempo, eram incapazes de distinguir uma coisa da outra. Pilhas de cadáveres, nus e obscenos, com uma mulher fraca demais para ficar de pé se escorando neles enquanto preparava sobre uma fogueira improvisada a comida que havíamos dado a ela; homens e mulheres agachados por toda parte a céu aberto, aliviando-se. Em uma fossa de esgoto boiavam os restos de uma criança.

Pouco depois que a Cruz Vermelha britânica chegou, embora talvez sem ter nenhuma relação esse fato, chegou também uma grande quantidade de batom. Não era em absoluto o que queríamos. Clamávamos por centenas e milhares de outras coisas. Não sei quem pediu batom. Gostaria muito de descobrir quem fez isso; foi um golpe de gênio, de habilidade pura e natural. Creio que nada contribuiu mais para aqueles prisioneiros de guerra que o batom. A mulheres se deitaram na cama sem lençol e sem camisola, mas com os lábios escarlates. Podia-se vê-las perambulando por todo lado sem nada, a não ser um cobertor em cima dos ombros, mas com os lábios bem vermelhos. Vi uma mulher morta em cima da mesa de autópsia cujos dedos ainda agarravam um pedaço de batom. Enfim alguém fizera algo para torná-las humanas de novo. Eram gente, não mais um simples número tatuado no braço. Enfim, podiam se interessar pela própria aparência. O batom começou a lhes devolver a humanidade.

Porque, às vezes, a diferença entre o céu e o inferno pode ser um pouco de batom.

[Extraído do livro DEUS E SEXO, de Rob Bell, Editora Vida, 2010]

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